Raposa Serra do Sol, onde Deus caminha descalço

07 de novembro de 2025

Comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa-Serra do Sol – Fotos: Sérgio Warnes

Na Raposa Serra do Sol, o Evangelho ganha pés descalços e rosto indígena. Entre roças e aldeias, a fé se faz presença, trabalho e esperança. Missionários e comunidades caminham juntos, partilhando vida e luta. Ali, Deus continua a plantar o Reino na terra e no coração do povo.

Por Sérgio Warnes

Ser missionário hoje é mais do que repetir palavras ou pregar em um púlpito. É deixar que o Evangelho se torne carne e presença viva onde a vida acontece — nas aldeias, nas roças, nas caminhadas sob o sol, no gesto simples de partilhar a farinha e a carne. Ser missionário é atravessar serras e fronteiras humanas para encontrar-se com o tal Jesus de Nazaré — aquele que mora nas montanhas, vive da terra e luta para sobreviver entre o povo.

Essa é a experiência que a Igreja vive entre os povos indígenas de Roraima: uma presença marcada pela alegria do encontro, pela esperança que nasce da luta e pela certeza de que Deus caminha com quem resiste, recordando que “o Senhor caminha com o seu povo” (Ex 13,21).

Raízes da missão: fé que se faz caminho

A história da missão em Roraima tem raízes profundas. No início do século XX, os primeiros beneditinos chegaram à região. Entre eles, Dom Alcuíno, que, por sua proximidade e carinho com o povo, foi chamado de Padre Makuxi. Já ali se plantava uma semente de amizade e respeito mútuo — uma missão que não se impunha, mas que caminhava junto.

O gesto decisivo veio em 1913, quando o tuxaua-geral Arabath foi ao encontro do jesuíta padre Cary Elwys, na Guiana. Essa iniciativa partiu do próprio povo indígena, abrindo um caminho de diálogo que, dois anos depois, se consolidaria como missão permanente.

Comida partilhada na comunidade.

Mais tarde, em 1948, os Missionários da Consolata assumiram presença contínua em Roraima, aprofundando o vínculo entre fé e cultura. E, em 1972, um gesto simples, mas profético, redefiniu tudo: o padre Giorgio Dal Ben, IMC, aceitou o convite para morar dentro da comunidade de Maturuca.

Como sinal de que desejavam, de fato, a presença do missionário — não como visitante, mas morando em seu meio —, o padre Giorgio pediu que lhe construíssem uma pequena casa. Essa escolha de viver com o povo, e não apenas falar a ele, transformou a missão em convivência, libertação e esperança.

Dessa vida partilhada brotou um modo novo de evangelizar: uma Igreja que se faz casa e comunidade, que aprende e ensina, que cura feridas e fortalece identidades.

Evangelho em forma de trabalho

Entre as muitas iniciativas concretas da Igreja de Roraima, destaca-se o projeto “Uma Vaca para o Índio”, um símbolo vivo de fé transformada em ação.

O projeto consiste em doar, inteiramente de graça, lotes de 50 fêmeas e dois reprodutores para as comunidades indígenas — não como caridade, mas como instrumento de autonomia e sustentabilidade. Cada aldeia assume a responsabilidade e cuida do rebanho como bem comum.

Projeto do gado.

A marca do ferro “M” e uma cruz identificam o gado pertencente ao projeto, que, após cinco anos em uma comunidade, é repassado a outra, ficando cada aldeia com o saldo resultante do trabalho com o lote de 52 rezes. Dessa forma, o Evangelho se torna visível: fé que gera trabalho, solidariedade e dignidade.

Mais do que alimentar o corpo, esse gesto alimenta a esperança. É o Evangelho com cheiro de terra e som de festa.

A força da comunidade: fraternidade e compromisso

A organização das comunidades indígenas é exemplo de comunhão e participação. Cada aldeia tem seu tuxaua (cacique), vaqueiro, catequistas, conselheiros, capataz e agentes responsáveis pela saúde e pela água.

Essa estrutura revela o rosto de uma Igreja viva, onde todos têm papel e responsabilidade. Como lembra o padre James, IMC: “O segredo de toda comunidade é a fraternidade e o compromisso.”

A mesa comum…

Claro, há desafios que pedem cuidado e presença pastoral — como se evidenciou em nossa caminhada pelas comunidades de São Mateus, Tamanduá, Deus Te Ama, Sol Nascente, Maturuca e Aramu. O padre Luís Emer, IMC, chama essas dificuldades de “novas lutas”: o alcoolismo, as divisões familiares, o desinteresse dos jovens, a perda da unidade e a falta de responsabilidade com os bens comuns. São feridas reais, mas também sinais de um processo vivo — de uma caminhada que amadurece entre erros e recomeços.

Mesmo diante das mudanças e das feridas, as comunidades seguem firmes, lutando por seus direitos e pela terra, convictas de que Deus caminha com elas.

Trabalhar juntos: a ferramenta da esperança

A maior força das comunidades é o trabalho coletivo. Reunir, dialogar, planejar e agir juntos é o coração da vida indígena — e o modo mais concreto de construir o Reino de Deus.

Sou um fiel crente de que, nas comunidades, como na sociedade em geral, todos somos parceiros de luta. Lutamos pelos direitos da terra, pela vida digna, pela igualdade de direitos, pela justiça e, especialmente, para ganhar o Reino dos Céus.

Visita a comunidade na TIRSS.

Meus irmãos indígenas são o testemunho de que a fé não é fuga, mas força de transformação. É nessa comunhão entre missionários e comunidades que o Evangelho continua nascendo, florescendo e dando frutos.

“Eu não sou indígena; sou negro, um afrocolombiano, mas compreendo sua luta e caminho com eles.”

Celebração eucarística na TIRSS.

A missão continua

Ser missionário hoje é viver a fé no meio do povo, partilhar a vida com os pequenos, escutar o grito da terra e fazer da presença de Deus uma força que liberta.

A missão em Roraima é uma história viva de esperança. Mostra que o Evangelho é um modo de viver; que o Reino de Deus cresce em silêncio — nas mãos que trabalham juntas e nos corações que acreditam que a luta vale a pena.

A luta continua — mas agora como celebração, comunhão e caminho de libertação.

*Sérgio Warnes, colombiano, é noviço da Consolata em Manaus.

Compartilhe:

Conteúdo Relacionado