Marília Nascimento Alves: “Padre Valeriano nos acolheu quando o mundo nos rejeitava”
Pe. Valeriano, Marília e Miguel – Foto: arquivo pessoal
Um mês após o falecimento do Padre Valeriano Paitoni, Marília Nascimento Alves relembra nesta entrevista este missionário que a acolheu com ternura e fé. É uma história de amor, esperança e missão que continua a inspirar.
Há exatamente um mês, no dia 5 de outubro, na Itália, despedia-se deste mundo o padre Valeriano Paitoni, missionário da Consolata que dedicou grande parte da sua vida a acolher, cuidar e defender a dignidade de crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids. Sua partida deixou uma imensa saudade, mas também uma herança de fé viva e de amor concreto.
Nos anos noventa, quando muitos se afastavam por medo ou preconceito, padre Valeriano se aproximou — abriu portas, braços e corações. Criou as Casas de Apoio Siloé, Lar Suzanne e Vila Vitória, onde dezenas de meninos e meninas encontraram não apenas abrigo e tratamento, mas também família, esperança e sentido para a vida.
Entre essas histórias está a de Marília Nascimento Alves, acolhida ainda criança, em 1997, no Lar Suzanne. Hoje, adulta, mãe e profissional da saúde, Marília relembra o quanto este missionário foi presença de Deus em sua vida: um pai espiritual que acreditou na vida quando tantos já não acreditavam.
Nesta entrevista, ela partilha sua história marcada por superação e gratidão, e presta uma homenagem emocionada àquele que, com coragem e ternura, fez da acolhida o centro de sua missão: “Padre Valeriano foi mais que um padre: foi um pai, um protetor, um anjo enviado por Deus.”
Marília, você poderia nos contar um pouco sobre sua história de vida?
Nasci em 24 de junho de 1993, em São Paulo. Fui diagnosticada com HIV por transmissão vertical, de mãe para filha. Meus pais, Edna e Elvis, eram dependentes químicos, e por decisão da Justiça fui retirada deles ainda pequena, pois precisaria de cuidados que eles não podiam me oferecer.
Fui acolhida numa Casa de Apoio para crianças no Morumbi, mas essa instituição foi fechada por maus-tratos e irregularidades. Em 1997, eu, Diego, Adriano e Tatiane fomos encaminhados para as Casas de Apoio fundadas pelo padre Valeriano Paitoni — Siloé e Lar Suzanne. Fiquei no Lar Suzanne, que ficava a poucos metros da Casa Siloé.
Ali encontrei amor, cuidado e dignidade. Cresci cercada de carinho e de uma verdadeira família. Ao atingir a maioridade, em 2011, deixei a instituição. Depois de algumas experiências difíceis, fui acolhida pela minha madrinha Dorinha — uma mulher maravilhosa. Em 2013 nasceu meu filho Miguel, saudável, graças a Deus.
Mais tarde conheci minha mãe e minhas irmãs, mas infelizmente não tive muito convívio. Minha mãe faleceu em 2016, e nunca cheguei a conhecer meu pai, que foi assassinado poucos anos depois do meu nascimento. Hoje sou técnica e auxiliar de enfermagem e trabalho em um grande hospital de São Paulo.
Você sofreu preconceito por viver com HIV?
Pessoalmente, não me lembro de ter sofrido diretamente. Sempre fui uma menina sonhadora e um pouco desligada dessas coisas. Mas presenciei cenas dolorosas, como a discriminação que meu irmão de instituição, o Adriano, sofreu na escola.
Era uma aula de Geografia, e a professora pediu que colocássemos papéis picados em um recipiente. Quando ele colocou a mão lá dentro, nenhuma criança quis colocar mais a mão. Foi um momento constrangedor. O pior é que a professora não fez nada para amenizar a situação.
O padre Valeriano foi até a escola, conversou com os educadores e se colocou à disposição para ajudar a lidar melhor com situações assim. Ele não aceitava o silêncio diante da injustiça, fazendo-me lembrar o que dizia Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.”
Houve momentos em que você pensou em desistir? O que te fez seguir em frente?
Não sei se a palavra é desistir, mas tive muitos momentos de desânimo. Lembro das férias escolares: as crianças que tinham família iam passar um tempo com seus parentes, e nós, que não tínhamos, ficávamos na instituição. Era triste, parecia castigo.
Quando falamos sobre isso com o padre Valeriano, ele se sensibilizou e mudou tudo. A partir daí, quem não tinha família era acolhido por voluntários da comunidade. Eram dias mágicos, de viagens, passeios e carinho. Isso mudou nossa autoestima e nos devolveu alegria. Ele sempre nos dizia: “Não abaixe a cabeça, jamais desista. Deus estará contigo. Lute sempre a favor da sua vida e do seu próximo.”
O que o Lar Suzanne representa para você hoje?
Cheguei ao Lar Suzanne em 1997, aos quatro anos de idade. No começo eu ficava escondida debaixo da mesa, assustada e desconfiada. Mas, com o tempo, as “tias” foram se aproximando e me acolhendo. Logo me integrei totalmente.
Viver ali era uma bênção. Estávamos entre pessoas que compreendiam nossas dores, principalmente as emocionais. Criamos laços fortes: éramos irmãos de instituição, brigávamos, mas nos amávamos e nos defendíamos.
A Casa representa a salvação da minha vida. Foi a família que eu não tive nos moldes tradicionais, mas que me formou e me protegeu. Crescemos juntos e, até hoje, mesmo adultos, nos ajudamos. As Casas Siloé, Lar Suzanne e Vila Vitória foram o nosso porto seguro — lugares de amor, esperança e vida.
Qual foi a importância do padre Valeriano Paitoni na sua vida? Qual o maior legado que ele deixou para você e para a sociedade?
Sua importância foi total! Ele salvou minha vida. Quando cheguei, eu era uma criança perdida, doente e sem rumo. Ele acreditou em mim quando os médicos diziam que não chegaríamos aos sete anos. Graças a ele, cresci, estudei, me formei e hoje sou mãe.
Ele foi um pai, um protetor e um conselheiro. Sempre presente, sempre preocupado. Mesmo quando voltou para a Itália, nunca se afastou. Ligava, visitava, acompanhava nossa vida. Sua presença iluminava nossos caminhos.
Sua coragem e coerência eram destacadas. Padre Valeriano não tinha medo de nada. Enfrentava o preconceito de cabeça erguida e, se fosse preciso, daria a vida por uma das crianças. Ele era coerente: o que dizia, fazia. Suas palavras e atitudes eram um só testemunho. “As palavras movem, mas os exemplos arrastam” (Santo Agostinho).
O maior legado que o padre Valeriano deixou é que a fé se traduz em obras, recordando que “a fé sem obras é morta” (Tiago 2,17). Ele lutou pela vida, acolheu crianças rejeitadas, enfrentou a epidemia de HIV com coragem e humanidade. E quando ele partiu, lembrei-me deste versículo bíblico: “Combati o bom combate, terminei a carreira, guardei a fé.” (2Tm 4,7-8)
O que ainda te dá esperança hoje? Quais são seus sonhos?
Minha história e o meu filho Miguel são minhas grandes motivações para seguir adiante. Hoje sou técnica e auxiliar de enfermagem em um hospital de São Paulo. Quero fazer faculdade de Enfermagem, conquistar minha casa e continuar criando meu filho com amor e fé, protegendo-o das coisas ruins da vida que passei antes de chegar à Casa.
Diria que todos temos problemas, mas o segredo é não desistir. Confiar em Deus e lutar sempre por seus sonhos, pois “ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas pode começar agora e fazer um novo fim” (Chico Xavier). E completaria com algo que aprendi na vida: “A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional” (Fernando Pessoa). É preciso coragem para mudar de caminho quando necessário.
O que você diria a quem ainda tem medo ou discriminação em relação às pessoas que vivem com HIV?
Eu não julgaria essa pessoa, mas a convidaria a se informar. Não há motivos para medo ou discriminação. Cada gesto de preconceito é uma aliança com o vírus e com a destruição do outro.
É possível viver normalmente com HIV, basta seguir o tratamento corretamente. O preconceito é tão letal quanto o próprio vírus, como dizia Herbert Daniel: “Não vivemos apenas perversos vírus biológicos, mas também perversos vírus ideológicos.”
Tenho certeza de que o padre Valeriano e seu legado estarão para sempre vivos em nossos corações, pois “aqueles que amamos não morrem jamais, apenas partem antes de nós” (Dra. Zilda Arns).
*Padre Júlio Caldeira é missionário da Consolata e mestre de noviços em Manaus.